domingo, 9 de agosto de 2009

Por que continuo sendo um terapeuta comunitário

Porque continuo sabendo ser este um modo pacífico de revolução constante, cotidiana, consciente, continuada, pelo qual muitos e muitas continuam dando a vida nos dias de hoje.

Anos atrás, lendo um texto do Prof. Adalberto Barreto, As dores da alma dos excluídos no Brasil, comecei a chorar. Não era de tristeza mas de alegria. Sentia que as dores da alma que nos deixara a ditadura militar argentina não foram em vão.

Em vão lutava havia já muitos anos, desde 1999, para ser preciso, quando um dia em Fortaleza, Ceará, decidira voltar a ser quem era antes do recebimento da carta que me transformara num morto em vida, num possível futuro desaparecido.

Tirando a esta expressão um tom panfletário que possa ferir a sensibilidade dos leitores e leitoras, posso ser mais preciso.

Naquela oportunidade, vieram à minha mente, como tantas vezes após 1977, o ano em que vim ao Brasil, cenas de desaparecimento, tortura, dor.

Nessa ocasião, contei chorando a Maria, minha companheira, por que chorava. O que eu via, o que eu sentia, o horror que ficara na minha alma, na minha mente, na minha vida, após aqueles anos infames, inqualificáveis, em que a vida não valia nada na Argentina.

Maria simplesmente fez uma pergunta, desse jeito que só ela tem de ser, de perguntar, de se defrontar com a vida:

--Mas eram argentinos os que faziam essas coisas?

Eu acordei de um pesadelo, ao ouvir essa pergunta.

Decidi, então, voltar a ser quem eu era antes do golpe, antes da resolução 919 da intervenção militar na Universidad Nacional de Cuyo de 19 de junho de 1976, que me expulsava, junto com dezenas de colegas estudantes e professores, por subversivo real ou potencial.

A distinção entre subversivo real ou potencial não fazia a diferença. Você iria morrer, morreria como morriam os seus colegas naqueles dias, sumiria, desapareceria, ninguém saberia mais de você.

Mas não morrera, ao menos não do modo previsto habitual, corriqueiro, normal, de morte morrida, fosse qual fosse a modalidade.

Morreria lentamente, dia a dia, minuto a minuto, em lenta agonia prolongada ao longo dos anos. Nunca mais seria eu mesmo.

Uma tortura infinita fora programada pelo engenho do ódio para os sobreviventes de 1976, e eu era um deles, e não sabia, mas sabia, soube, saberei sempre.

E ao ler o texto do prof Adalberto que ontem comecei, por minha conta, a traduzir ao espanhol, me dei conta de que eu não era o único, de que os migrantes nordestinos e hispanos que eu encontrara nos anos 77 em diante por São Paulo e Rio, os chilenos e paraibanos, pernambucanos e mineiros, gaúchos e capixabas que afluíam como eu para os corredores da Polícia Federal em São Paulo e para a presença do padre Mario Miotto da AVIM do parque Dom Pedro II, atrás de documentos, atrás de trabalho, atrás de um lugar sob o sol, do direito de existir, esses migrantes entre os que me contava, éramos essa massa de desenraizados, de pessoas sem alma que o Prof. Barreto tão bem retratava no seu texto.

Eu era um deles, um desses seres que perderam suas raízes, sua autoestima, sua razão de viver, sua autoimagem, sua memória, sua identidade.

Um morto vivo, como dissera Marcelo Nazar um dia.

Assim, me dei conta de que podia voltar, quis voltar, e continuei voltando, continuarei sempre, pois a vida é um caminho de volta, um caminho de regresso à pátria celestial em que estão Dom Fragoso, minha mãe, meus tios, minhas avós, e na qual estarei mesmo antes de morrer, porque, como Dom Fragoso dizia e agora eu sei, o reino de Deus é o presente, é o instante, é o aqui e agora.

É esta madrugada de domingo 9 de agosto de 2009, em que os pássaros começam a cantar e enseguida o céu a clarear, e que devo te deixar pois devo ir caminhar pela praia, viu?

Chau, até qualquer hora, ta? É isto.

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